A PROPRIEDADE IMATERIAL NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Autor: Eliane Yachouh Abrão



Os direitos imateriais marcaram notável presença na Constituição da República promulgada em 05 de outubro de 1988.Uma breve digressão às constituições anteriores o demonstram.







A primeira das Constituições a contemplar o assunto foi a "Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil" de 24/02/1891, através do reconhecimento do direito autoral e da propriedade industrial, a par de garantir o "livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial" (art.72, parágrafo 24) , e de assegurar a "livre manifestação de pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem dependência de censura" (art.72, parágrafo 12). Afirmou no parágrafo 25 a propriedade dos inventos industriais a seus autores, garantindo-lhes um privilégio ainda que temporário e concedendo-lhes "um prêmio razoável quando haja conveniência de vulgarizar o invento"; a propriedade das marcas de fábrica (parágrafo 27), e o direito exclusivo de reprodução, pela imprensa ou qualquer outro processo mecânico das obras literárias, artistas e científicas a seus autores. (parágrafo 26).







A disposição do parágrafo 24 da Constituição de 1891 não se repetiu integralmente nas Constituições seguintes, mas a do parágrafo 26 manteve-se intacta até a Emenda Constitucional de 1969.







Já a disposição referente à propriedade industrial ganhou aqui e ali alguns retoques até atingir os contornos com os quais figura na Constituição atual.







A Constituição de 16 de julho de 1934 decompôs em duas disposições distintas a proteção à propriedade industrial: reservou uma apenas às invenções (patentes e modelos) e seu aspecto relevantemente social, e outra às marcas e ao nome comercial. Inovou em relação à anterior exatamente pela introdução da garantia ao nome comercial paralelamente à da marca, situação essa que perdura até os dias de hoje.







A exclusividade dos autores sobre a reprodução de suas obras intelectuais, permaneceu como na carta anterior, em redação mais técnica:







"20) Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas é assegurado o direito exclusivo de reproduzi-las. Esse direito transmitir-se-á aos seus herdeiros pelo tempo que a lei determinar." (art. 113)







A grande novidade na história das nossas Constituições ficou por conta da completa omissão do tema na Carta de 10 de novembro de 1937. Como a grande preocupação desta (a razão a que veio) era a estrutura política do Estado, omitiu-se do texto constitucional qualquer referencia à propriedade intelectual. A preocupação do Estado Novo era com respeito à (falta de) liberdade de manifestação do pensamento "por escrito, impresso ou por imagens" (item 15, do art. 122). Foi a Carta de 37 que introduziu a censura prévia. A lei magna daquele tempo facultou à lei prescrever, no mesmo inciso 15, "a) com o fim de garantir a paz, a ordem e a segurança pública, a censura prévia da imprensa, do teatro, do cinematógrafo, da radiodifusão, facilitando à autoridade competente proibir a circulação, a difusão ou a representação".







Não que durante esse período a literatura ou as artes não tivessem florescido ou mesmo a industria editorial arrefecido, mas o que se nota é que o direito fundamental e exclusivo de autores e titulares de direitos ao produto de sua criação acabou sendo amarrado à liberdade de expressão e nem em relação àqueles que passassem pela censura foi garantido o direito ao aproveitamento econômico das respectivas reproduções.







Foi a louvada Carta Magna de 18 de setembro de 1946 que recolocou as coisas, ou os institutos, em seus devidos lugares, isto é, voltando a garantir o privilégio temporário aos inventores, a assegurar a propriedade das marcas e à exclusividade do nome comercial e a garantir o direito exclusivo dos autores na reprodução das obras literárias, artísticas e científicas (art. 141, parágrafos 17,18 e 19). Introduziu o conceito do "justo prêmio" quando a vulgarização do invento conviesse à coletividade.







A Constituição de 17 de outubro de 1967 com a redação dada pela Emenda Constitucional nº01 de 17 de outubro de 1969 não significou um passo atrás, como em outros campos do direito e das garantias fundamentais, na questão da propriedade intelectual. Com relação ao direito autoral manteve intacto os textos anteriores (art.153, parágrafo 25), e em relação à propriedade industrial fundiu os textos anteriores num só parágrafo, o de nº 24. Retirou o prêmio como forma de compensar o titular do invento em caso de interesse do Estado sendo omissa quanto a essa possibilidade.







Com o advento da Constituição da República de 1988 a propriedade intelectual se consolidou de vez e os direitos de personalidade, embora tratados com certa parcimônia de sistematização, tiveram ampliados seus espaços na Carta vigente.







O texto relativo aos direitos de autor recebem nova- e imperfeita- redação em relação ao texto anterior. Parte dos direitos conexos são também erigidos à categoria de garantia constitucional e a imagem nunca esteve tão subitamente agraciada, como adiante se verá.







São as seguintes as disposições relativas aos direitos de autor e conexos existentes na constituição em vigor:







"Art 5º : Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito a vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:







XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização , publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;







XXVIII - são assegurados , nos termos da lei:







a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;







b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas".







A redação do inciso XXVII mistura e repete os conceitos de utilização, reprodução e publicidade. As três expressões poderiam ser substituídas por "utilização pública", simplesmente.







Deixou, também a Constituição da República de 1988 de registrar, pela primeira vez, a expressão "literária , artística e científica" oriunda do Código Civil e das Convenções Internacionais de que o Brasil sempre foi e continua sendo parte. A razão se encontra, por certo, na tendência globalizante internacional que culminou com o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (ADPIC ou TRIPS), Anexo IC do Acordo de Marrakesh pelo qual se estabeleceu a Organização Mundial do Comércio, e datado de 15/04/1994. A globalização está mais voltada ao comércio e não à cultura, seguindo esta a reboque da industria do entretenimento.







Interpretando a disposição conclui-se que a retirada da expressão literária, artística e científica do texto Constitucional significa que obras estéticas representam apenas uma das categorias das obras intelectuais protegidas. Nesse sentido o princípio e as garantias constitucionais projetam um espectro muito mais amplo de proteção, fora do ambito da Lei especial, a Lei 9.610/98 e de outras atinentes à matéria.



O texto como está na atual Carta reforça a pessoa do autor, na qualidade de sujeito de direito da relação jurídica autoral. O legislador preferiu a expressão autor, com conotação pessoal ,à expressão titular do direito autoral. Titularidade pressupõe ato de cessão - nem todo autor é o titular do direito patrimonial - e a proteção constitucional está, pois, nitidamente voltada ao criador da obra.







No inciso XXVIII, letra a), nota-se uma mistura generalizada de conceitos: direito autoral (obras coletivas) funde-se com direitos de personalidade (imagem e voz), que por sua vez desembocam no chamado direito de arena (direitos das pessoas dos jogadores na transmissão das atividades desportivas). É o texto:







"XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:







a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas."







A despeito da imprecisão técnica, a conclusão é a de que o chamado direito conexo, o direito do intérprete entre outros, foi pela primeira vez erigido à categoria de garantia constitucional. Quem sabe não representará o resgate do artista à sua verdadeira condição (nem autor nos moldes tradicionais nem coadjuvante) relegada e censurada pelas Constituições anteriores.







A letra b) do mesmo inciso é curiosa:







"XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:







........................................................................







b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas."







Assegurando o legislador constitucional o direito de as representações sindicais fiscalizarem o aproveitamento econômico das obras criadas por seus associados, acaba por comprometer o esforço da doutrina pátria, semeado durante décadas, na tentativa de desvincular a atividade criadora da atividade laboral de que é símbolo a Súmula nº 386 do Superior Tribunal Federal retromencionada. Não que a eles, como mandatários, não se possa atribuir tal direito, mas a vinculação de institutos tão distintos num texto constitucional é de ensejar confusão.







Com efeito, a obra ou a execução autoral/conexa é uma "res", resultado independente e tangível da personalidade de seu criador. O direito deste, como tal, é exercido "erga omnes" em virtude do inalienável vínculo que junge criador à criatura. Como tal, essa "res", depois de pronta e publicada deverá ou não, a critério de seu criador, gerar frutos e rendimentos cujo fruidor pode ser o próprio titular ou outro beneficiário que houver por bem nomear.







A atividade laboral, ao contrário , isto é a energia física do criador colocada à disposição da obra, existe e se perfaz durante a confecção dela. Completada a obra, termina a relação laboral ( que pode ser autonoma ou comportar prestação de serviço ou vínvulo de emprego) e se inicia a relação autoral.O salário ou os honorários são substituídos por rendimentos ou "royalties" decorrentes de cada utilização pública da obra.







Já no campo da propriedade industrial o avanço é maior em direção ao interesse social.. Diz o texto do art. 5º no inciso XXIX:







" a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio tamporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas aos nomes de empresas e a outros signos distintivos tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País".







Toda proteção, pois, é também assegurada à pessoa dos autores de inventos industriais ( de novo o legislador prefere a expressão autores a titulares) e, embora resguardada a autoria, os interesses sociais e econômicos do país estão colocados acima dos individuais.







As marcas ganharam a vastidão da expressão "outros sinais distintos" e o nome de empresa parte do acervo intangível da sociedade mercantil ganhou proteção extensiva às associações civis porque a antiga expressão nome comercial foi substituída pela mais abrangente.







Mas é na proteção aos direitos de personalidade que se encontra a maior conquista e embora sem ordem sistemática. Dentre todos os direitos de personalidade a imagem ganhou um espaço maior. Enquanto a voz humana recebeu uma única menção, o direito à imagem apareceu em nada menos do que três incisos do art. 5 º.







Com efeito além da já mencionada menção à imagem dentro do direito conexo ao de autor (letra a) do inciso XXVIII), a imagem surge como bem e garantia individual em dois outros incisos, no inciso V em que se assegura "o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem", e no inciso X que trata da inviolabilidade da "intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação."







A imagem, pois, há que ser respeitada como um conjunto de bens que se acumulam durante toda a existência do indivíduo, compondo parte de seu acervo intangível.







Note-se que a imagem na visão do legislador de acordo com a letra a) do inciso XXVIII corresponde ao retrato, ou seja, ao uso deste através dos modernos meios de comunicação (reprografia, transmissão, radiodifusão), de que é titular qualquer pessoa , e, especialmente os artístas e pessoas públicas. Já a imagem a que se referem os incisos V e X supra está relacionada à expressão da personalidade do indivíduo, àquele conceito não tangível que acompanha a menção ao nome ou à aparência física da pessoa. E abrange toda e qualquer pessoa, qualquer que seja a idade, tipo ou profissão que exerça. Essa reiterada proteção - repetida em três momentos do mesmo artigo da Constituição - é exercida pela negativa: ou se a respeita ou, se a indenizará. O desrespeito simplesmente alegado pelo titular do bem violado transforma-o "ipso facto" em ilícito.







Algumas conclusões positivas extraem-se da Constituição vigente:







A primeira delas, é a de que o direito autoral está onde sempre esteve: um direito de natureza civil com destinação basicamente econômica. Ao proprietário intelectual da obra cabe usar,fruir e/ou dela dispor com exclusividade como bem entender. Á título oneroso ou gratuito, com transmissibilidade aos herdeiros ou sucessores.







A segunda, a de que a Constituição resgatou o tratamento dispensado ao artista ( autores ou intérpretes) e ao direito autoral como forma de expressão cultural, sepultando definitivamente qualquer forma de censura, limitando-os apenas aos preceitos de ordem pública.







A terceira relaciona-se à ampla cobertura constitucional conferida ao direito de imagem.







A explicação repousa certamente, como afirmado no início deste trabalho no fenômeno crescente nas sociedades ocidentais, qual seja o da prevalência da individualismo sobre o coletivismo. Resulta também dos abusos cometidos a todo momento em nome da liberdade de expressão, por tanto tempo vigiada.







Sobre a liberdade de expressão, conceito atrelado historicamente ao direito autoral cabem algumas considerações:







As constituições de 1934 de 1937, a liberal de 1946 e a Ementa de 1969, surpreendentemente retiraram dos espetáculos e diversões públicas a garantia de livre manifestação. Confira-se.







Na Constituição de 1934, art.. 113 o texto assegurava a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direito concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, mas no parágrafo 12 ao reiterar a liberdade na manifestação do pensamento, sem dependência de censura, dela excluiu os espetáculos e diversões públicas.







Na Constituição de 1937, art. 122 idem: enquanto se assegurava aos brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, no inciso 15 letra a), abria-se espaço à lei inferior para estabelecer a censura prévia da "imprensa, do teatro, do cinematógrafo, da radiofusão , facultando à autoridade competente proibir a circulação, a difusão ou a representação".







Já a Constituição de 1946, em seu art. 146,parágrafo 5º libertou os brasileiros das amarras da censura política, do pensamento expresso através da imprensa.Entretanto ressalvou da alforria os espetáculos e diversões públicas.







A Constituição de 1967, art. 153, parágrafo 8º, repetiu o mesmo equívoco, não sem antes estender a liberdade de expressão às convicções políticas.







Olhando o passado, pois, não há como não festejar a notável e bem vinda disposição do inciso IX da Constituição de 1988 que decanta a " livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".




Fonte



http://www2.uol.com.br/direitoautoral/artigo05.htm